segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O almoço

Sentiu uma voraz vontade de puxar os fios de cabelo que de tão negros lembravam o que se via no escuro.
-Parece que está doente, menina.
Não estava e não respondeu a crítica da irmã mais velha.
Concentrava-se em uma ação maior. O puxar dos seus cabelos que de tão negros lembravam o fechar dos olhos e, por isso, a sua morte e que se ela continuasse daquele jeito não tardaria.
Enfim.
Puxou os cabelos.
- Ele virá hoje lhe visitar?
- Não, só amanhã. Vem almoçar comigo.
- Hum. Vou preparar um cozido. Ele gosta, não?
- Acho que sim. Não lembro. Tanto faz.
- O cozido então. Com brócolis e queijo.
Poderia ser da minha carne, que tal? Não faço questão. Afinal, ele comeu o meu coração, o que seria do resto? Não se lembrava do gosto de seu eterno amigo. Ele vem para se despedir e ela odeia despedida. Ele daria um beijo na testa e um até logo. Afinal, os dois iriam morrer um dia e aquela hora não tardaria.
- Você acredita que nos encontraremos após a nossa morte?
- Quem? Você e eu?
- Pode ser, na verdade: eu e ele.
- Sim, vocês sim. São almas gêmeas.
- Não acredito nisso.
- Ora, mas vocês são. Certo que vocês irão se encontrar.
-Estarei com meu vestido azul bordado que ele tanto gosta. De meus cabelos, farei uma trança para que ele possa sentir o meu perfume bem de leve ao me abraçar. Não usarei maquiagem. Afinal, para quê se ele verá meu rosto para a eternidade. Terei que ser eu mesma.
- Poderia vesti-lo amanhã. Ele ficaria feliz.
- Não. Apenas para o encontro definitivo. Haverá de ser especial. Amanhã é apenas mais uma despedida sem importância.
- Ele falou o motivo da viagem?
- Não. Não perguntei. Apenas disse que o esperava para o almoço.
-Hum.

....

Não há silêncio maior que o silêncio dele. Não há dor maior que sua ausência. Ele não veio ao almoço. Ele não pretende se despedir. Afinal, esqueceu o que meu am...amizade significa. Talvez, ligasse hoje mesmo para se desculpar. Ignoraria seus lamentos e lhe desejaria uma ótima viagem.
O telefone toca.
- Já sei. É ele. Demore para atender. Não quero que pense que estou esperando porque não estou. Ora, atenda logo!

No outro dia, o vestido azul bordado foi retirado do armário para um fim. O fim que a morte garante aos vivos. Ela sabia que após o descansar dele, o seu não tardaria e se vestiu para esperar o momento.

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