"Quase sempre a lápis em pedaços esparsos de papel, seguindo o curso aleatório de meus devaneios ou de minhas caminhadas" "O narrador é um ser feito de palavras, não de carne e osso, como os autores tendem a ser"
quinta-feira, 13 de maio de 2010
HISTÓRIAS DE UMBUZEIRO
Santana do Ipanema - O pequeno de olhos azuis parou sua bicicleta em uma freada brusca que levantou poeira amarela para todos os lados. O seu olhar curioso apontou para um grupo de crianças singular embaixo de um pé de umbuzeiro. Mas o que elas faziam lá em uma tarde de forte calor no sertão alagoano? Lendo, ora essa. O que mais poderia ser? Aproveitavam uma deliciosa leitura de um livro com título bem sugestivo: “À sombra do umbuzeiro”.
O projeto Leitura no Sertão, que é desenvolvido pelo Swa Instituto e o Portal Maltanet*, parece árvore de sonhos brotando em uma terra seca. É a sétima vez que a árvore dá frutos e não apenas umbus-cajás ou umbuzada, em que a fruta é fervida verde com leite e açúcar. Por que o umbuzeiro? “Não houve um motivo específico, como o umbuzeiro é uma árvore tradicional do sertão, imaginamos como bom seria ler embaixo de sua sombra”, comenta José Malta Neto, um dos organizadores do projeto.
“À sombra do umbuzeiro” surgiu a partir das histórias de santanenses publicadas no portal Maltanet, no período de 2006 e 2007. E a leitura com a criançada nasceu porque, infelizmente, centenas de exemplares encalharam. Alegria para os pequenos que ganharam o projeto Leitura no Sertão.
- Todos vocês estão à vontade? Pergunta José Malta.
- Estamos. O coro de crianças responde.
E estavam mesmo. Algumas ainda apoiadas nos joelhos, outras com as pernas já esticadas em uma grande lona embaixo do umbuzeiro. Todas atentas ao que estava prestes a acontecer. A tarde de leitura se iniciava para os alunos da Escola Municipal de Educação Básica Vereador João Francisco Cavalcante, que fica lá no povoado São Felix, município de Santana do Ipanema.
Exemplares do livro “À sombra do umbuzeiro” foram distribuídos para as 40 crianças que cochichavam entre si. O que despertou mais curiosidade do garoto de pele queimada de sol, que já tinha largado a bicicleta, apanhado um umbu para comer e se aproximado do grupo de leitores. Sem ninguém perceber sua presença, ele escalou até um dos galhos do umbuzeiro e lá se posicionou. Mas que movimentação esquisita era aquela? Tentava desvendar.
A criançada, que tinha entre 11 a 15 anos, folheou o livro e encontrou muitas histórias escritas por santanenses natos ou naturalizados. Eram contos, poemas, crônicas e outras peças literárias. Os alunos teriam que ler em voz alta algumas delas. É assim que o projeto funciona, com uma leitura compartilhada entre crianças e adultos. Momento de tensão quando um rebanho tentou cruzar a cerca que separava as crianças da estrada de barro.
- Valei-me Nossa Senhora! Gritou uma professora.
Apenas um susto, nenhuma tragédia. Uma leitura em parte silenciosa, já que cada estudante falava baixinho para si trechos do livro, tomou o ambiente do sertão e o garoto em cima do umbuzeiro foi notado.
- Desce ai, vem se juntar com o resto do pessoal, disse José Malta.
O garoto acenou com a cabeça para o lado e para o outro.
- Mas se descer, você vai ganhar um livro. Você sabe ler?
E ele novamente balança a cabeça.
- Tudo bem, vai ganhar o livro mesmo assim.
E o garoto desceu do umbuzeiro, ganhou o livro, mas não se juntou ao grupo da leitura. Decidiu acompanhar no outro lado da cerca.
Religiosos, que nem quase todo santanense, o grupo formou uma grande roda e rezou a oração do Pai Nosso. E depois evocaram o hino da terra amada, que faz lembrar um poema de Gonçalves Dias. Emocionante para quem vem de fora é observar que todas as crianças sabiam de cor a canção.
Santana do Ipanema
Torrão querido pedacinho do meu Brasil
És a Rainha do Sertão Alagoano
Desta Pátria mãe gentil
Tua história enaltece nossa gente
Com bravura e amor-febril
Padre Francisco Correia e Martinho Vieira Rego
Pioneiros nesta terra varonil
Tua bandeira simboliza nossas cores
As tuas praças, este rio, nossos amores
O teu progresso eternamente a florescer
Sou sertanejo, Santanense até morrer!
Minha terra tem palmeiras
Nossos campos têm mais flores
Onde canta o sabiá
Nosso céu tem mais estrelas
Onde nuvens passageiras
Dão espaço ao luar
O teu passado de glória
Está vivo em nossa memória
Teus filhos hão de aprender
É mais forte o meu desejo de dizer
Sou sertanejo, Santanense até morrer!
Autor: Remi Bastos Silva
Chegara à hora da leitura. A primeira voluntária foi uma menina sorridente de trança no cabelo. Adaine gostava de ler e se destacava na escola por isso. E o poema escolhido veja a coincidência, tinha a temática parecida com o momento.
Recomeço
Levante-se! Bata a poeira.
Poeira da sua solidão
Você não está só nessa multidão!
A vida é bela e você não precisa ficar
Se consumindo com várias suposições,
Remoendo o passado
Levante-se! Bata essa poeira
Olhe de lado, e veja,
Ainda tem pessoas que sofrem.
Com sua Introspecção
Por que você está assim?
Levante-se! Bata a poeira!
Erga a cabeça!
Sinta o calor emanado do sol
Tire os sapatos, fique descalço,
Sinta as vibrações da terra
Ande, respire fundo, ande até cansar.
Agora sinta o pulsar do seu coração.
E reflita, foi apenas um tropeço.
Sem grandes conseqüências.
É passado, já passou!
Sinta que a vida é bela,
Sempre vale a pena recomeçar.
Autor: João Francisco das Chagas Neto – Dezembro/ 2003.
Adaine e seus colegas sentiam as vibrações da terra e o momento mágico perdurou. Lá no alto, forte e imponente, a Serra do Gugi era testemunha de um novo amanhã para aquelas crianças. O medo e a vergonha de errar alguma palavra ou expressão, não frearam o menino Mário, que escolheu a próxima leitura. O franzino recitou em voz alta mais um poema.
Depende de mim
Não sei se fico,
Não sei se vou, Não sei se paro
Aqui estou;
Devo ir?
Não posso ficar!
Devo seguir?
Não posso parar.
A vida é assim,
Assim é a vida,
Não posso esperar
A vida passar.
Vou prosseguir
No caminho correto,
Que caminho é este?
Não sei se estou perto!
Depende de mim
Isto estou certo.
Autor: Francisco de Assis Farias (Tamanquinho) em 23/08/98
Aplausos para o leitor! Agora, cada aluno leu um verso em voz alta, cantaram o poema alagoano. Algumas crianças da comunidade também acompanhavam a leitura. Dedos riscavam o papel. A voz narrativa de Wellington deu tonalidade ao próximo poema.
Rio Ipanema
Corre, oh! Rio Ipanema,
Entre pedregulhos e caminhos sinuosos.
Cerca tua cidade com teus últimos córregos de água salobra.
Faz de tuas viagens, intermináveis lamentos,
Para que teus filhos não joguem em ti,
Todos os teus enganos.
Daqueles banhos que nos destes,
Daquelas águas que saciaram nossa sede.
Reveste agora, nossa alma de complacência,
Para que sejamos menos infames,
Ao tirar tua pureza.
Rio Ipanema, os silvícolas do passado que tanto te reverenciaram;
Faz com que nós, agora menos civilizados,
Salvemos o teu leito ferido.
Rio é feito de enchentes e de vazios,
Que ao adormeceres ao canto das rãs e das luzes dos vaga-lumes,
Ao acordares, foges pra bem longe,
Para que não vejamos teu martírio.
Continuas a nos embalar com os teus ruídos das grandes cheias
e que tua intermitência aplaine nosso corações.
Histórias engraçadas arrancaram risadas dos pequenos leitores. Narrativas reais, como a de um tradicional programa de violeiros.
Garoto Pesado
Tradicional programa de violeiros, Rádio Correio do Sertão. Lá estavam dois grandes repentistas, João Paraibano e Zé de Almeida. Nisso assistente de programa, Zé Locutor, chega e entrega uma mota para ser lida naquele instante por algum da dupla. Seu João que está logo na frente pega o bilhete e logo inicia a leitura. Um pouco desatento, começa, “Está desaparecido um Garoto, com uma pinta na testa, pesando aproximadamente, oito arroubas”, ai arregala os olhos e alterando a voz, diz, “ISSO NÃO É UM GAROTO, ISSO É UM GARROTE”.
Autor: Sérgio Soares de Campos
O sol ameaçava se despedir do céu, quando todos deram um até logo ao umbuzeiro e retornaram à escola. Cachorro quente e coca-cola foram servidos para celebrar a festa no sertão. E que venham as sombras de outros umbuzeiros, juazeiros e quixabeiras.
*http://www.maltanet.com.br/
Fotos / Rodolpho Ornitz
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Planos para 2010, parte 2
"Aguçar a escuta poética, despoluir a consciência, captar ressonâncias transcendentes e se deixar contaminar pelas vozes inconscientes"
Cremilda Medina
Cremilda Medina
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